Aborrecimento
““Quando perdemos o gosto pela multidão é porque estamos velhos. Quando não achamos graça em andar a pé na rua, por atropelada que ela esteja, e até suja, e até povoada de gente suspeita, então é porque não pertencemos já ao mundo dos vivos. (...)”.”
Agustina Bessa-Luís. Dicionário Imperfeito. 2008.
Agustina Bessa-Luís. Dicionário Imperfeito. 2008.
Quando era jovem fui a várias conferências sobre os temas mais diversos e em muitas delas saía um pensamento principal: que o mundo (então atual) estava perdido, que os jovens não se interessavam pelos temas que, justamente, o conferencista tão bem abordava, que já não se sabia escrever em bom português, que os valores se perdiam.
Hoje vou a algumas conferências sobre os temas mais diversos e em muitas delas sai (estranhamente) o mesmo pensamento: que o mundo está perdido, que os jovens não se interessam pelos temas que, justamente, o conferencista de circunstância tão bem aborda, que já não se sabe escrever em bom português, que essa “coisa” dos valores se perde na inexorável linha do tempo. E isso era para mim, e ainda é hoje para mim, um tremendo aborrecimento.
O antes e o agora são tão imiscíveis como o azeite e a água. Em meados dos anos 80 eu e os meus companheiros de República decidimos, com muita perseverança e esforço próprio pintar interiormente a casa em que habitávamos, limpar o soalho e encerá-lo, remover o lixo acumulado pelas gerações que nos precederam, recuperar as portas e a cave até então mais acessível aos gatos do que às pessoas. Passámos meses nessa missão, sempre em linha (analógica) com um empreiteiro que era pai de um amigo nosso para sabermos a medida exata de areia, água e cimento. E tudo fizemos, qual Câmara Municipal, para inaugurar a recuperação num dia de festa, chamado Centenário que acontecia e ainda acontece no último sábado de janeiro de cada ano. Estávamos exaustos mas orgulhosos de termos sido capazes de sair do conforto do intelecto para trabalharmos como operários de construção civil, com razoável qualidade diga-se. Nas Repúblicas de Coimbra existe o hábito de escrever nas paredes. Qualquer dislate que nos saia fica assim imortalizado na parede. Por isso antes de pintar as paredes passamos todos os dizeres e tornamos a escrevê-los na virgindade branca da tinta fresca. Isto à exceção de um poema do Zeca Afonso escrito pela seu própria mão em finais dos anos 60, o qual protegemos com fita adesiva antes de iniciarmos a tarefa, deixando-o intacto.
No dia do Centenário não podíamos estar mais orgulhosos do que então estávamos. E mostrámos a casa, quarto a quarto, aos repúblicos que nos precederam. Para surpresa nossa um grupo considerável de antigos estudantes ficou indignado, com aquela indignação própria da idade. Que aquilo não podia ter sido feito pois se perdeu, nas obras de recuperação, a caligrafia. Argumentei com a necessidade de preservação mas, a partir de um certo momento, deixei de os ouvir e só lhes sentia o movimento das boquinhas indignadas, não os ouvia pois estava concentrado num grande e decisivo pensamento: quando envelhecer não quero ser assim! Quando hoje vou aos Centenários e vejo o meu quarto hippie chic transformado num quarto hippie trash desvio o olhar e o pensamento para não ser previsível e aborrecido.
No dia do Centenário não podíamos estar mais orgulhosos do que então estávamos. E mostrámos a casa, quarto a quarto, aos repúblicos que nos precederam. Para surpresa nossa um grupo considerável de antigos estudantes ficou indignado, com aquela indignação própria da idade. Que aquilo não podia ter sido feito pois se perdeu, nas obras de recuperação, a caligrafia. Argumentei com a necessidade de preservação mas, a partir de um certo momento, deixei de os ouvir e só lhes sentia o movimento das boquinhas indignadas, não os ouvia pois estava concentrado num grande e decisivo pensamento: quando envelhecer não quero ser assim! Quando hoje vou aos Centenários e vejo o meu quarto hippie chic transformado num quarto hippie trash desvio o olhar e o pensamento para não ser previsível e aborrecido.
A indignação da geração mais velha sobre a mais nova é tão aborrecida quanto a moralidade. Quem assim se indigna parte do estúpido preconceito de que os instrumentos de medida morais, culturais ou estéticos, terão que ser os mesmos de quando eram jovens. E isso é, no mínimo, estúpido porque as coisas mudam, e bem. Se repararmos com atenção hoje há menos pobreza, menos guerras, menos ditadores, já não há o muro de Berlim nem o imponderável comunismo internacionalista, já se viaja sem ser rico, já há muitos procuradores que procuram mesmo e as pessoas que entalavam os seus pensamentos no silêncio da insignificância dizem coisas a outros e têm likes pelos seus desabafos ou pura e simplesmente pelo novo e belo novo biquíni que, conceda-se, lhes fica tão bem.
O mundo só parece aborrecido pois ontem, como hoje, as pessoas que têm voz pública são extremamente aborrecidas e são velhas, algumas mesmo sem cronologicamente o serem. Os velhos são aborrecidos pois no intervalo de falarem das doenças falam em como dantes era bom e de como agora tudo é mau, tudo é vicioso. E a corrupção? Meu Deus a corrupção, que pouca vergonha! Fazendo parecer que por sabermos hoje da corrupção é como se ela ontem não existisse, o que é mentira! Envelhecer é uma chatice mas morrer, convenhamos, é um bocadinho mais dramático. Por isso descarregar a angústia do envelhecimento em cima de quem tem a curta felicidade de não ser velho é de um egoísmo chato, redondo, escusado. E eu controlo-me. Pelo menos é o que eu acho.
Rui Vítor Costa