VÍDEO: Belmiro Jordão e a nova era do Teatro Jordão

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O Teatro Jordão está agarrado à nossa memória e Belmiro Jordão conhece como ninguém essa ligação incontornável ao palco e à tela por onde passaram grandes artistas e magníficas produções, preenchendo o imaginário colectivo vimaranense do século XX.

A poucos dias de completar 89 anos, em entrevista no último sábado ao programa «Largo do Toural» da Rádio Santiago , o conhecido empresário (chegou a ser o responsável pela gestão de 32 salas de cinema na zona norte entre Aveiro e Bragança) percorreu vários momentos, da glória ao declínio, da "luxuosa sala de espectáculos", obra arrojada que ajuda a compreender a dimensão do carácter empreendedor do seu avô - Bernardino Jordão (1868-1940).

Naquele dia 20 de Novembro de 1938, Belmiro Jordão acompanhava a família que merecia o aplauso da Cidade, na inauguração de "uma obra que todos os vimaranenses juntos, não tiveram coragem de realizar - um teatro moderno e completo - grande em toda a parte", como descreve o nosso jornal, na edição em que relata esse "magno assunto de todas as conversas".

"O avô não estava para construir uma casa de espectáculos naquele sítio, mas sim uma fábrica, porque estava muito em voga a criação de edifícios fabris. O Teatro surge do incitamento de grandes amigos e das principais instituições da nossa terra que, sentindo a falta de uma casa de espectáculos, porque anteriormente tinha havido o Teatro D. Afonso Henriques e o Cinema Gil Vicente, e passaram-se muitos anos sem que Guimarães tivesse uma casa de espectáculos", afirmou, lembrando o feito admirável liderado pelo avô que mereceu o agradecimento da Cidade.

"Na época, foi considerado o terceiro melhor cine-teatro do nosso País. Foi idealizado e construído pelo arquitecto alemão Neumann, era um judeu que fugiu ao Hitler e a primeira obra que fez em Portugal onde se radicou foi o Teatro Jordão. Foi uma obra invulgar, construída com processos inovadores", continuou, ao lembrar que, para a inauguração, porque o avô, republicano convicto, "pessoa que não aderiu ao Estado Novo e, por isso, foi muitas vezes preso pela PIDE, teve de indicar um nome para substituir a palavra «Jordão» da fachada principal". "O avô sugeriu e assim se cumpriu a colocação do nome «Martins Sarmento», pessoa com quem ele se relacionou e admirava muito. O Teatro foi inaugurado como Teatro Martins Sarmento, mas o nome manteve-se por um período relativamente curto porque, um ou dois anos depois, os estudantes, na altura das Nicolinas e das Roubalheiras, resolveram deitar a placa do Teatro Martins Sarmento ao chão e ficou a ver-se na fachada o nome «Teatro Jordão», nome que vai continuar, porque a Câmara o manteve, o que muito nos honra e orgulha".

Belmiro Jordão tinha seis anos quando foi inaugurado o Teatro Jordão. Não esquece o dia "até pela asneira" que cometeu e que deixou os pais "muito envergonhados". À distância de tantos anos, mantém viva a realidade de uma experiência que só a sua memória conserva. "Antes de começar o banquete, andei a recolher os chocolates que estavam em cima das mesas e enchi os bolsos do colete, porque foi uma cerimónia de gala, e estava vestido de colete e fraque, condizente com a solenidade do evento. Adormeci num camarote, os chocolates derreteram nos bolsos e fiquei com a roupa manchada. E assim apareci na inauguração", contou, recuando à meninice, à espuma da memória do dia em que Guimarães ganhou um teatro moderno e completo.

"O espectáculo inaugural foi uma homenagem ao criador do Teatro Português na sua terra natal, com um serão vicentino, com a presença da grande actriz Amélia Rey Colaço. Houve um banquete, muito badalado. Os corredores dos camarotes tinham mesas a todo o comprimento para a recepção aos convidados, organizada pela Casa K, de grandes amigos do meu avô que tinham uma pastelaria em Braga. Os convidados chegaram de todo o País para esse momento, sem dúvida glorioso", e que colocou Guimarães no roteiro das grandes produções artísticas nacionais.

"O meu avô convidava os artistas - a Amélia Rey Colaço, a Beatriz Costa - a ficarem no Palácio de Vila Flor, após os espectáculos. Era ali que estavam hospedados. Era um anfitrião que gostava muito de conviver com as pessoas. Para além das suas actividades políticas e industriais, ele gostava de conversar com o povo. Gostava muito de vir para o jardim de São Francisco. Todos os dias de manhã, passava algum do seu tempo num banco de jardim e foi aí que morreu. Tanto se dava com pessoas humildes como com os intelectuais do seu tempo, como o Martins Sarmento e Alfredo Pimenta", observou, ao fazer uma espécie de tributo ao homem que nasceu em São Romão de Arões, em Fafe, mas que adoptou Guimarães incondicionalmente como a sua Cidade.

Legado do visionário
que acreditou na expansão
da energia eléctrica

Com um testemunho rico de pormenores e que ajuda a compreender a dimensão do carácter empreendedor de quem levantou o emblemático Teatro, Belmiro Jordão vincou: "o meu avô foi um visionário. Era um homem com instrução primária, aprendeu a ler e a escrever no Lar de Santa Estefânia, casa que ao longo de toda a sua vida protegeu e que nós até ao fim das nossas sociedades, também sempre auxiliamos. Foi um visionário na criação do Teatro Jordão, acolhendo uma solicitação feita pela comunidade vimaranense, mas também foi o grande responsável por Guimarães ser uma das primeiras cidades do País a ter acesso à distribuição generalizada de electricidade. Ele foi o impulsionador da electricidade nesta região, levando-a aos consumidores domésticos. Comprou as acções da sociedade inglesa que se tinha estabelecido na Cidade e que tinha um gerador instalado no Campo da Feira, ao lado da igreja dos Santos Passos, e resolveu (algo impensável à época) fazer uma barragem, passando a produzir a electricidade através da hidroelétrica. Criou uma padaria, uma moagem e diversos estabelecimentos comerciais... Ele pensou na criação do teleférico para a Penha e chegou a ter bobinas dos cabos de aço. Teve uma fábrica de pirolitos e de laranjada. Nunca deixou de lembrar o Lar de Santa Estefânia, uma casa que protegeu até ao fim da vida e que nós continuamos. Aliás, o melhor filme que fizesse o circuito do País, toda a receita das exibições no Teatro Jordão era dedicada a essa instituição", assinalou, ao alertar que a distribuição de energia elétrica enfrentou algumas resistências porque "havia pessoas com medo da energia eléctrica".

"O Teatro não tinha receitas e lucros garantidos. O meu avô sabia desde o início que o cinema não era negócio de dar dinheiro, mas a sua iniciativa era uma maneira de comparticipar para o enriquecimento e benefício cultural da Cidade. Ele começou sem a ambição do fim lucrativo e pude comprovar isso, porque fui gerente do Teatro mais de 30 anos e os resultados não davam para debitar a luz se a tivéssemos de pagar ao preço normal", advertiu, insistindo na acção benemérita do avô, legado que está expresso nas mais diversas instituições "e no coração da gente humilde com quem ele conversava diariamente no banco do jardim de São Francisco".

"Seguindo os exemplos do meu avô e do meu pai, procurei sempre ajudar os mais necessitados e proteger as casas que os acolhiam. Era um princípio da nossa família. As Oficinas de São José, os Bombeiros Voluntários de Guimarães, o Lar de Santa Estefânia, a Ceia de Natal na Irmandade de São Crispim... Ele protegia os seus empregados como se fossem família e a prova de reconhecimento que o pessoal lhe tinha é que numa das vezes em que o meu avô foi preso pela PIDE, o motorista obrigou a PIDE a levá-lo também... Porque não abandonava o patrão, foi voluntariamente preso. Cheguei a ir visitá-lo na prisão, eu era ainda pequenino, lembro-me de ser num edifício com uma clarabóia muito grande, no Porto. Foi sempre um republicano convicto e firme e casou com uma mulher de sangue azul, porque a minha avó era descendente dos Condes da Covilhã. Mas, em casa deles, a monarquia e a república sempre se deram muito bem", prosseguiu .

Recordando essa faceta política de Bernardino Jordão, o neto precisou que ele era detido "principalmente na época de eleições para não fomentar a oposição ao governo salazarista". "Nunca conseguiram prendê-lo dentro de casa, embora alguma das vezes ele lá estivesse", acrescentou.

Após ter adquirido o Palácio de Vila Flor, nas obras de reconstrução, o avô dotou a casa com vários 'falsos'. Um dos seus esconderijos preferidos era o da cozinha, um armário embutido, em que o tecto do armário se levantava e ele podia aceder a uma sala, num vão, entre os dois andares", frisou, servindo esse testemunho o pretexto para recordar as aventuras da infância no palácio, onde os esconderijos serviam para longas e inesquecíveis brincadeiras.

Um palco para
todas as artes

Com a lotação de 1200 lugares, podendo acolher até cerca de 2 mil crianças nas exibições cinematográficas por ocasião da Festa do 9 de Março, da Sociedade Martins Sarmento, o Teatro Jordão chegou a ser uma das poucas casas de Portugal que "permitia a organização de espectáculos de ballet, da ópera, de teatro, de orquestra e a exibição de filmes". "Era considerado um dos melhores palcos e a melhor tela de cenários que havia no País, porque permitia a descida e subida de cenários com uma altura extraordinária. Para as exibições cinematográficas era excepcional, porque o ecrã tinha mais de 20 metros de largura, o que era inédito. O nosso teatro tinha até pano de ferro. Era um pano em aço que subia toda a altura do teatro para permitir um isolamento em caso de incêndio entre a plateia e o cenário", elucidou, fazendo questão de mencionar que "antes da exibição de qualquer filme, a casa era vistoriada pela Polícia e pelos Bombeiros para verificar as condições de segurança".

"O que mais me agradava no cinema eram as borlas que concedia. A miudagem que aparecia sem dinheiro esperava que eu chegasse e assim podiam assistir a uma matiné. Ainda hoje há pessoas que se lembram desse tempo em que não havia televisão e a tela do Jordão era uma janela aberta a outros mundos".

As peripécias
com a censura

Durante o Estado Novo, todos os filmes antes de serem exibidos em Portugal eram sujeitos a uma Comissão de Censura "que se reunia todos os meses no Palácio Foz, juntando representantes de diversas entidades, da Cultura, da PIDE, da Obra das Mães, dos distribuidores e dos exibidores". Belmiro Jordão esteve presente em muitos desses encontros, em representação da Associação Portuguesa de Empresas Cinematográficas. "Gostava muito de assistir a essas reuniões pelas peripécias que lá se passavam. Quase todos os filmes que eram exibidos tinham a intervenção dos censores. Se um filme apresentava um beijo mais prolongado, o representante da Igreja dizia "corta", se o filme exibia uma manifestação estudantil, o representante do Estado gritava "corta". O filme «O ÚItimo Tango em Paris», quando ficou disponível para a apresentação, teve tantos cortes que eu resolvi com o Dr. Neves Leal que o filme não se exibia em Portugal, os cortes deturpavam-no. Só depois do 25 de Abril é que foi exibido em Portugal.

Renascimento do Teatro
e a nova função

"Fico grato pela Câmara ter tomado a iniciativa de renovar e manter o Teatro Jordão. O nosso propósito em relação ao Teatro assim como fizemos em Vila Flor - a Universidade está em Guimarães graças à nossa família porque proporcionou por intermédio de meu pai um edifício para a acomodar - foi servir a comunidade. Fiquei grato porque uma das vontades era que tanto o Teatro como o Palácio não fossem cair nas mãos de um privado. Tivemos propostas de vários construtores civis para destruir o teatro e no local serem edificadas habitações. Fomos sempre contrários, pelo princípio de que tudo aquilo que era nosso e poderia servir a Cidade devia ser colocado à disposição da Cidade", declarou, considerando que a nova função ao serviço do ensino faz jus e serve de tributo à memória do seu criador que "sempre valorizou a escola e a instrução".

Inauguração
em Dezembro

Embora a inauguração ainda não tenha data marcada, sendo apontado o próximo mês de Dezembro para o solene acontecimento, Belmiro Jordão fez um balanço do seu percurso: "fui gerente do restaurante, do teatro, do cinema, de muitas coisas, ao serviço de muitas instituições... mas de todas as actividades que tive a mais gratificante foi a de poder dedicar o meu tempo e as minhas possibilidades à Ordem de São Francisco. Dar, ajudar e colaborar com a Ordem de Francisco, com os utentes e com os funcionários, é o que mais me orgulha", disse, esperando que a nova era do Teatro Jordão sirva o propósito que orientou a sua criação: "contribuir para o engrandecimento de Guimarães".
"É um edifício que está ao serviço do País, o cinema não deu lucros, mas criou um nome e foi o arauto de uma época áurea de Guimarães", comentou, insistindo: "Estou grato à Câmara por preservar o Teatro. É uma imagem que tenho do meu avô, do meu pai e minha na gestão do teatro." A obra de requalificação já está na recta final e o nome do seu mentor continuará a viver na fachada principal do edifício.

Marcações: Teatro Jordão, Belmiro Jordão

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