O marasmo
Aquando da Revolução Francesa e pelos anos 1789/90, na respectiva Assembleia Nacional Constituinte e depois na Legislativa (1891/92), os revolucionários
sentavam-se à esquerda do Presidente e os conservadores à direita, ficando no centro os moderados que, pronto, entre aqueles laterais e pela ambiguidade dos seus ocupantes, acabou por ser apodado de o “marais”. Dessas localizações foi que resultaram as actuais enominações de esquerda, direita e talvez, com alguma propriedade, o que hoje se designa por “bloco central”; bloco, assim, o presumível herdeiro daquela outra designação pouco abonatória. E esta porque ambos os lados sabiam bem o que queriam, embora divergissem substancial e diametralmente nos seus pretenderes e o “marais”, entretanto, ia-se guiando pontualmente pelo seus que, cedo, foram confluindo com os da direita. Razão pela qual a progressão para uma sociedade mais justa parou abruptamente em 1894, pela tomada do poder pelos “girondinos”.
Entretanto e regressando ao primeiro parágrafo, pode-se reafirmar que com o “Thermidor” se suspendeu realmente o ímpeto revolucionário e que muitas das conquistas que tinham
sido conseguidas foram posteriormente revertidas. É que embora os “sans coulottes”, ou congéneres, fossem a grande maioria da população francesa, nem estavam enquadrados, nem tinham líderes que os dirigissem, pelo que cederam o poder à nascente “classe média”, ou seja, aos moderados. E com isso a França lá prosseguiu a sua viagem.
Noutro ângulo e séculos antes, a nossa Europa e como cantou o lírico, tinha avançado do natal “Mare Nostrum” e sua faixa atlântica para “Novos Mundos ao Mundo ir(ão) mostrar”
(verbo último este que se deve substituir por dominar). Assim e desde o século XV, portugueses, espanhóis, neerlandeses, franceses, ingleses e muito mais tarde alemães, estenderam-se por esse planeta fora, latrocinando, explorando e apropriando-se do que lhes apetecia e dava proveito (sem jamais se poder escamotear o opróbrio irreparável da escravatura e seu comércio). E numa sequencialidade temporal e diferentes participações, essa actividade expansionista teve efeitos nesses países europeus, mormente o seu enriquecimento e um progressivo desenvolvimento comercial e tecnológico; efeitos que, no entanto, foram distintos de país para país. Tendo depois, com o progredir dessas sociedades e em amplitudes dispares, culminado por meados do século XVIII na revolução industrial que, pronto, mais agravou as diferenças com o resto do mundo.
Entretanto, os impérios coloniais dos referidos países foram-se criando e mantendo, reduzindo ou alargando nos séculos XVIII e XIX; aqui já em confronto com a eclosão e implantação do Império Britânico (ou, posteriormente com o americano, pela expansão do seu território inicial ou para o exterior - Caraíbas, Filipinas, Alaska -). De comum a todos a posse ocupacional do território ou, inclusivamente, a sua integração no do colonizador.
E tudo alicerçado no entendimento duma superioridade rácica que, além do mais, obrigava à disseminação da cultura europeia, como direito que lhe assistia, postergando as dos povos ocupados e subalternizados (no que nos toca a nós portugueses, vale a pena rememorar o humanismo precursor do Padre António Vieira e negativamente, na senda dos pactos coloniais e já no século XX, o Acto Colonial e o Estatuto do Indígena).
Nesta dual paisagem, a da moderação e a da convicção da superioridade, não obstante as duas grandes guerras do século passado terem beliscado e depois questionado a hegemonia europeia (posterior e definitivamente trespassada para o tio Sam), a verdade é que, com a tutela daquele parente, os europeus mantiveram o sonho da sua diferença e do seu direito. E nem as crescentes independências, nem o subsequente evoluir social, cultural, económico e técnico dalgumas sociedades, os acordou para uma realidade que cada vez mais afrontava o neocolonialismo. Que cada vez mais mostrava a pequenez de uma identidade cultural que apenas representam cerca de 6% da população mundial e ainda menos do seu espaço terrestre. E que tendia a ignorar a luta pela liberdade e pela igualdade dos outros.
Foi, porém, esse o espírito conservador que nas passadas dezenas de décadas prevaleceu e se quer que subsista perante a emergência de realidades que o põem em causa. Realidades que vão demonstrando que as condições que o fizeram surgir e depois permitiram, já não se congregam e que o seu ressurgimento é impraticável. E que as situações dúbias que ainda subsistem aqui ou ali têm, ou terão, os seus dias contados.
Ora a Europa na sua assimetria nacional está neste mundo, tem um passado consistente e enormes potencialidades. Muitas mesmo! Precisa, portanto, de olhar o futuro. Não com as pretensões doutrora, mas com a compreensão de que ele está em transformação e a caminho de uma apetecida equiparação planetária; pode mesmo acrescentar-se que ela está a acontecer, em termos de evolução, em marcha acelerada, como os sinais que nos chegam de todo o lado parecem querer evidenciar. O que pressupõe a necessidade de actuações de índole progressista, pois o “pântano” já não consegue apresentar saídas credíveis e muito menos atinentes à satisfação das cada vez maiores massas de cidadãos que por elas lutam. É, ademais, o que nos ensina o nosso milenar processo histórico e as diversas revoluções que este regista (do seu desabrochar, desacelerar, retroceder e termo). Há, pois, que ler a situação e sem titubear avançar para um desenvolvimento que corresponda ao desencantado sentir da maioria, afim de se estatuírem medidas inovadoras de implementação de um verdadeiro bem comum universal. E assim se ir criando e formatando uma objectiva mentalidade social capaz de, a cada momento, se rever (por esclarecida e comparticipativa) na política que se pretenda prosseguir. Ainda que, sem pressas, como toda a lição do passado nos leva a reflectir, pois, repete-se o mais uma vez, o pôr o carro à frente dos bois desemboca num “cul de sac”.
O tempo é, portanto, para avançar sem tibiezas ou hesitações no progresso do sapiens, para uma sociedade global pacifica, livre, igualitária e solidária. E suportando esse avanço no
ideal fundacionista da Declaração Universal dos Direitos do Homem, incrementar a concretização dos seus 25 artigos, sem sobressaltos, ainda que com toda a firmeza e sem recuos, mas em total e permanente sintonia com uma maioria apoiante que tem de o querer (pois só assim se evitarão marchas a trás). E para com a motivação e disponibilidade dela percorrer um itinerário que não será fácil, isento de escolhos e que só essa “vox populi” permitirá atingir a ansiada meta cujo alicerce a Declaração, há cento e tal anos, receitou.
Apenas uma palavra mais. A menção da “vox populi” obriga à sua significância neste contexto. E esta só pode ser a do consenso duma grande maioria sobre os diversos condicionantes da vida, dos materiais aos espirituais. Digamos, a mentalidade vigente em cada espaço social e tempo, porque é esta igual consciência que permite a convergência dos queres individuais e origina acções concertadas para se suprirem carências sentidas e prementes. Pois, ela, essa “vox populi”, é que é o motor do progresso.
Fundevila, 12 de Abril de 2025