O marasmo

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Aquando da Revolução Francesa e pelos anos 1789/90, na respectiva Assembleia Nacional Constituinte e depois na Legislativa (1891/92), os revolucionários

sentavam-se à esquerda do Presidente e os conservadores à direita, ficando no centro os moderados que, pronto, entre aqueles laterais e pela ambiguidade dos seus ocupantes, acabou por ser apodado de o “marais”. Dessas localizações foi que resultaram as actuais enominações de esquerda, direita e talvez, com alguma propriedade, o que hoje se designa por “bloco central”; bloco, assim, o presumível herdeiro daquela outra designação pouco abonatória. E esta porque ambos os lados sabiam bem o que queriam, embora divergissem substancial e diametralmente nos seus pretenderes e o “marais”, entretanto, ia-se guiando pontualmente pelo seus que, cedo, foram confluindo com os da direita. Razão pela qual a progressão para uma sociedade mais justa parou abruptamente em 1894, pela tomada do poder pelos “girondinos”.

Eram, por conseguinte, os interesses dos distintos estratos sociais (o conceito marxista de classe ainda não tinha condições para ser formulado) que marcavam as posições políticas naquela sociedade. E se os conservadores pretendiam a manutenção dos privilégios do passado ou parte deles, os progressistas lutavam pela sua eliminação total, pela liberdade e igualdade. Por sua vez, o “pântano”, consoante os avanços ou recuos lhes eram propícios, ou a alguns, aliava-se ora com um lado ora com o outro, sempre, porém, em função e para resguardo de situações de privilégio que os diferençava dos “sans coulottes” (cerca de um século depois e nas circunstâncias particulares deste país peninsular, Raphael Bordalo Pinheiro metamorfoseou-os no “Zé Povinho”).

Entretanto e regressando ao primeiro parágrafo, pode-se reafirmar que com o “Thermidor” se suspendeu realmente o ímpeto revolucionário e que muitas das conquistas que tinham
sido conseguidas foram posteriormente revertidas. É que embora os “sans coulottes”, ou congéneres, fossem a grande maioria da população francesa, nem estavam enquadrados, nem tinham líderes que os dirigissem, pelo que cederam o poder à nascente “classe média”, ou seja, aos moderados. E com isso a França lá prosseguiu a sua viagem.

Noutro ângulo e séculos antes, a nossa Europa e como cantou o lírico, tinha avançado do natal “Mare Nostrum” e sua faixa atlântica para “Novos Mundos ao Mundo ir(ão) mostrar
(verbo último este que se deve substituir por dominar). Assim e desde o século XV, portugueses, espanhóis, neerlandeses, franceses, ingleses e muito mais tarde alemães, estenderam-se por esse planeta fora, latrocinando, explorando e apropriando-se do que lhes apetecia e dava proveito (sem jamais se poder escamotear o opróbrio irreparável da escravatura e seu comércio). E numa sequencialidade temporal e diferentes participações, essa actividade expansionista teve efeitos nesses países europeus, mormente o seu enriquecimento e um progressivo desenvolvimento comercial e tecnológico; efeitos que, no entanto, foram distintos de país para país. Tendo depois, com o progredir dessas sociedades e em amplitudes dispares, culminado por meados do século XVIII na revolução industrial que, pronto, mais agravou as diferenças com o resto do mundo.

Entretanto, os impérios coloniais dos referidos países foram-se criando e mantendo, reduzindo ou alargando nos séculos XVIII e XIX; aqui já em confronto com a eclosão e implantação do Império Britânico (ou, posteriormente com o americano, pela expansão do seu território inicial ou para o exterior - Caraíbas, Filipinas, Alaska -). De comum a todos a posse ocupacional do território ou, inclusivamente, a sua integração no do colonizador.
E tudo alicerçado no entendimento duma superioridade rácica que, além do mais, obrigava à disseminação da cultura europeia, como direito que lhe assistia, postergando as dos povos ocupados e subalternizados (no que nos toca a nós portugueses, vale a pena rememorar o humanismo precursor do Padre António Vieira e negativamente, na senda dos pactos coloniais e já no século XX, o Acto Colonial e o Estatuto do Indígena).

Nesta dual paisagem, a da moderação e a da convicção da superioridade, não obstante as duas grandes guerras do século passado terem beliscado e depois questionado a hegemonia europeia (posterior e definitivamente trespassada para o tio Sam), a verdade é que, com a tutela daquele parente, os europeus mantiveram o sonho da sua diferença e do seu direito. E nem as crescentes independências, nem o subsequente evoluir social, cultural, económico e técnico dalgumas sociedades, os acordou para uma realidade que cada vez mais afrontava o neocolonialismo. Que cada vez mais mostrava a pequenez de uma identidade cultural que apenas representam cerca de 6% da população mundial e ainda menos do seu espaço terrestre. E que tendia a ignorar a luta pela liberdade e pela igualdade dos outros.

Foi, porém, esse o espírito conservador que nas passadas dezenas de décadas prevaleceu e se quer que subsista perante a emergência de realidades que o põem em causa. Realidades que vão demonstrando que as condições que o fizeram surgir e depois permitiram, já não se congregam e que o seu ressurgimento é impraticável. E que as situações dúbias que ainda subsistem aqui ou ali têm, ou terão, os seus dias contados.

Ora a Europa na sua assimetria nacional está neste mundo, tem um passado consistente e enormes potencialidades. Muitas mesmo! Precisa, portanto, de olhar o futuro. Não com as pretensões doutrora, mas com a compreensão de que ele está em transformação e a caminho de uma apetecida equiparação planetária; pode mesmo acrescentar-se que ela está a acontecer, em termos de evolução, em marcha acelerada, como os sinais que nos chegam de todo o lado parecem querer evidenciar. O que pressupõe a necessidade de actuações de índole progressista, pois o “pântano” já não consegue apresentar saídas credíveis e muito menos atinentes à satisfação das cada vez maiores massas de cidadãos que por elas lutam. É, ademais, o que nos ensina o nosso milenar processo histórico e as diversas revoluções que este regista (do seu desabrochar, desacelerar, retroceder e termo). Há, pois, que ler a situação e sem titubear avançar para um desenvolvimento que corresponda ao desencantado sentir da maioria, afim de se estatuírem medidas inovadoras de implementação de um verdadeiro bem comum universal. E assim se ir criando e formatando uma objectiva mentalidade social capaz de, a cada momento, se rever (por esclarecida e comparticipativa) na política que se pretenda prosseguir. Ainda que, sem pressas, como toda a lição do passado nos leva a reflectir, pois, repete-se o mais uma vez, o pôr o carro à frente dos bois desemboca num “cul de sac”.

O tempo é, portanto, para avançar sem tibiezas ou hesitações no progresso do sapiens, para uma sociedade global pacifica, livre, igualitária e solidária. E suportando esse avanço no
ideal fundacionista da Declaração Universal dos Direitos do Homem, incrementar a concretização dos seus 25 artigos, sem sobressaltos, ainda que com toda a firmeza e sem recuos, mas em total e permanente sintonia com uma maioria apoiante que tem de o querer (pois só assim se evitarão marchas a trás). E para com a motivação e disponibilidade dela percorrer um itinerário que não será fácil, isento de escolhos e que só essa “vox populi” permitirá atingir a ansiada meta cujo alicerce a Declaração, há cento e tal anos, receitou.

Apenas uma palavra mais. A menção da “vox populi” obriga à sua significância neste contexto. E esta só pode ser a do consenso duma grande maioria sobre os diversos condicionantes da vida, dos materiais aos espirituais. Digamos, a mentalidade vigente em cada espaço social e tempo, porque é esta igual consciência que permite a convergência dos queres individuais e origina acções concertadas para se suprirem carências sentidas e prementes. Pois, ela, essa “vox populi”, é que é o motor do progresso.

Fundevila, 12 de Abril de 2025


terça, 22 abril 2025 10:30 em Opinião

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