Juventude

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A educação é das áreas sociais a que a esmagadora maioria das pessoas dá uma grande importância e, paradoxalmente, é das áreas em que a exagerada atenção

que sobre ela recai a diminui e acorrenta a sua liberdade criativa, subjacente a quem ensina e a quem aprende. A educação é, hoje, uma espécie de obra camarária em que os reformados se abeiram dos trabalhadores para dar palpites sobre a posição do tubo, a profundidade da escavação, tornando o trabalho impossível, pois os “mestres” não qualificados que espreitam a obra, atazanam a determinação de quem a executa. E, mais grave, os “engenheiros” que controlam a obra estão, mais preocupados na opinião dos reformados, do que com a exequibilidade do projeto. E aquilo que era para ser uma simples e linear obra de saneamento, rapidamente se transforma numa instalação artística sem qualquer utilidade para o fim para a que se destinava.

O que se passou em Portugal na escola pública nas últimas décadas foi muito mau: a desconsideração pelo papel dos professores, o ataque sistemático ao seu profissionalismo e autoridade, a menorização da sua carreira, as experiências delirantes feitas em gabinetes ministeriais e universitários, foi comum e destruidor. As consequências, agora visíveis, mas perfeitamente evitáveis, são já muito difíceis de conter e de inverter. Mesmo o atual ministro que, de forma determinada, corajosa e exemplar, mas sobretudo com um enorme bom-senso, trouxe alguma paz e normalidade ao setor, terá alguma dificuldade em inverter o que foi perniciosa e estupidamente feito ... lá atrás, com pessoas como Maria de Lurdes Rodrigues e outros que não tiveram vergonha em exibir o título de Ministro da Educação. Ainda hoje comentam, impantes, a Educação que ajudaram a destruir. Com uma desfaçatez admirável, diga-se.

Ainda assim, sinto-me particularmente feliz e realizado na profissão de professor. São raras as profissões em que se lida diariamente com adolescentes e se percebe o tempo através da energia e criatividade dos jovens. Noutras profissões é possível cristalizar o tempo, nesta não: percebe-se o correr do tempo, os seus cambiantes, os novos problemas, mas também as novas soluções, a angústia da alma, mas igualmente a sua determinação.
Ou eu estou a ficar mais frouxo e sensível com a idade, ou realmente tenho tido a sorte de apanhar um conjunto de adolescentes notáveis como meus alunos. É um gosto enorme lidar com a sensibilidade, a rapidez de raciocínio, e mesmo alguma estupidez própria da inconsequência (sempre saudável) de quem é jovem. No entanto, o bom carácter daqueles que tenho por alunos esbarra sistematicamente na fragilidade assustadora que a maioria dos jovens carrega em si. Chega a dar dó. Tentou-se, nos últimos anos, construir uma juventude imune à dor. Tentou-se suprimir as causas da dor e as experiências traumáticas que nos fazem reagir e crescer. Mas a dor, o sofrimento, a angústia, são humanos e aparecem sempre. O papel dos pais é ajudar a superá-las e não construir muros artificiais que as iludam. O papel dos pais é ajudar os filhos nos seus sonhos e não a de projetarem neles sonhos que lhes são alheios. Daí que a angústia, a dor, a depressão, aparecem agora nas coisas mais comezinhas. O resultado de um teste deixou de ser uma constatação da competência individual e temporal de cada um, para ser um drama de proporções épicas, sobre o qual não se reflete e para o qual se esgravata para arranjar culpados. Criou-se a ideia de que toda a gente é excelente à partida e não o é. Acha-se normal que o Joaquim tenha mais jeito para a bola que o Francisco, que a Joana tenha mais queda para a guitarra clássica que o António, mas sobre uma matéria escolar toda a gente tem de a perceber na plenitude, e assim não o será. A luta de cada um de nós, desde que temos a perceção da nossa individualidade, é perceber aquilo em que somos bons e maximizar essas competências através do trabalho, minimizando e ajustando as áreas em que não somos tão bons. Estaria ainda deprimido não fora perceber, desde muito jovem, que a bricolage masculina era o meu ponto fraco. Não sofri particularmente com isso. Deixei o meu Black & Decker repousar durante décadas, intacto, no estojo. Do qual só sai quando o meu cunhado me visita e eu lhe peço para pendurar um quadro. Porque haveria eu de sofrer com isso, quando há tantas coisas mais a fazer?

Por estes dias assistimos horrorizados às notícias da partilha de vídeos de violação de uma jovem. Mais do que o hediondo ato cometido que deverá ser exemplarmente castigado, sem subterfúgios, pois quem o fez não presta e deve ser responsabilizado pela bárbara violência exercida, deixa-me angustiado a quantidade de pessoas que viu o vídeo e nada fez.
A vã tentativa de tornar os miúdos imunes à dor, de os desculpabilizar de tudo que acontece, torna-os cobardes e insensíveis. Como é possível que não houvesse uma alma sequer que entre as dezenas de milhares de partilhas falasse com alguém e entregasse o caso a polícia? A que ponto de insensibilidade e irresponsabilidade chegamos nós enquanto comunidade?
Ouvi há dias, noutra dimensão bem menos grave, um relato sobre um instrutor militar que se sentia (agora) perdido pois os seus instruendos, jovens voluntários, tinham uma tendência generalizada para começarem a chorar sempre que ele lhes berrava. Perante a real ameaça à Europa, pergunto-me se vamos estar à espera que seres divinos defendam a nossa liberdade e independência? Se o sacrifício que a defesa da nossa liberdade impõe, não nos diz respeito? Cumpri o serviço militar obrigatório, contrafeito, o que me estragou a entrada mais atempada no mundo do trabalho, mas cumpri-o sem azedume. A distância permite-me ver hoje mais claro. Entrei lá com a jactância de quem se julga o maior e, rapidamente, percebi que não o era. Dei valor à solidariedade, apanhei um banho de humildade e de camaradagem que me foi útil nas várias dimensões que a minha vida a partir daí teve.
Sou, igualmente, um orgulhoso produto da escola pública. Tive mais professores de que não gostei – independentemente da sua competência académica – do que aqueles que adorei. Aprendi com todos, mas aprendi, fundamentalmente, a adaptar-me. A vida é também isso.
Respeitar e compreender os professores e a Escola, sem mudanças constantes de rumo ou a paralisação decorrente do rasgar de vestes dos pais pela incompreendida excecionalidade dos filhos, já seria uma forma de a deixar funcionar e se promoverem cidadãos competentes e resilientes. Isso depende dos professores, mas, sobretudo, da capacidade coletiva de se pensar em conjunto. Com humildade e, vá lá, alguma inteligência.

terça, 15 abril 2025 10:10 em Opinião

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