As moscas

Ainda se não extinguiram os ecos de alguma polémica que envolveu a alteração da fisionomia do Toural, ocorrendo, ainda hoje, manifestações de crítica ao formato que atualmente tem – uma praça ampla e desafogada, assim como de nostalgia pelo que anteriormente era o seu – um jardim a impor ao local um uso pouco mais que de doméstico quintal ajardinado.

Pelo que acabo de dizer percebe-se bem que, como já em tempos manifestei nestas linhas, gosto mais, visual e funcionalmente, do Toural tal como ele é hoje, o que acontece por várias razões, cuja enumeração não é objeto desta crónica e, por isso omito.

Participei, no passado dia 6, na comemoração do dia de Reis, que ali teve lugar, em substituição do festejo da passagem de ano que lá deveria ter ocorrido, e só não ocorreu pelas péssimas condições atmosféricas do dia.
O largo estava repleto, sendo muito maior a multidão que assistiu e participou no evento, do que aquela que seria comportável pelo largo da Oliveira, onde ele se realizou em anos anteriores.
Dadas as dimensões, formato e piso do local, todos puderam, em ótimas condições, assistir à magnífica projeção de wall mapping sobre a fachada da Igreja de S. Pedro, tendo eu registado com agrado a intensa adesão de quem esteve presente, maioritariamente jovens, quando às imagens projetadas correspondiam temas musicais que foram sucesso em épocas que vão dos anos 60 aos anos 90 do século passado.

Considerando-me eu um “filho dos gloriosos anos 60”, década em que emergiu a mais profunda, rápida, alargada e permanente alteração social – no mais lato sentido do termo – de que há memória, senti grande emoção ao constatar o fenómeno.
Não fora a amplitude e limpidez do espaço e a festa não teria sido possível naquele local.
O Toural foi objeto de várias alterações, sendo bem conhecidas as fotos da placa central protegida por alto gradeamento, com a estátua de D. Afonso Henriques no seu centro, e depois com o espaço central vazio, por deslocação da dita estátua para onde hoje se encontra. Desde essa altura e até 1953, ano em que completei os meus nove aninhos de existência, o centro do largo era efemeramente ocupado com uma chamada Fonte Luminosa, feita em gesso e ali colocada no período das Festas, após as quai era destruída e retirada. Apesar dessa provisoriedade, a fonte exibia altos jatos de água, a que o povo chamava “os esguichos”, e, durante a noite, de sob o plano da bacia de água, jorravam potentes focos de luz de várias cores. Além disso, cada um dos topos norte e sul da touralina plataforma eram dotados de um coreto, instalações estas a partir das quais se digladiavam, uma de cada lado, em aguerrido despique, duas das mais importantes Bandas de Música do concelho. Acabada a execução de uma peça por uma das Bandas, a outra, no coreto fronteiro, iniciava a execução da sua peça, e o denso grupo de ouvintes, mantendo a sua unidade e densidade, atravessava a praça para ouvir a outra filarmónica; assim acontecia enquanto durasse o despique, sendo vencedora a Banda que mais assistência e aplausos concitasse.

A cada alteração na configuração e arranjo do Toural correspondeu sempre grande polémica, mas, com o decorrer do tempo, os críticos, normalmente as pessoas mais idosas, ou interiorizavam a mudança ou … morriam, e a polémica extinguia-se! Depois era como se o Toural tivesse sido sempre como ficara a ser após cada mudança de visual.
Aliás, algo semelhante aconteceu com o jardim na alameda de S. Dâmaso, a que, naqueles anos 50 da minha lembrança, era chamado de Jardim de S. Francisco, como ainda hoje lhe chamo quando as memórias me sobem à tona.
Constituía o jardim só o seu atual primeiro troço, a contar do Toural; no período das Gualterianas o jardim era vedado, apenas nela se podendo entrar mediante aquisição de bilhete para tal, ao que o povo se não permitia.

Evidentemente, era o regalo da burguesia, que ali se pavoneava em constante passeio, de um lado para o outro, muitos cavalheiros ainda de bigode, fato de três peças e chapéu, acompanhados das suas “respetivas”, estas de estrutura corporal ainda ancorada nos princípios do século; pó de arroz, batom e rouge, peitos imponentes e generosos glúteos, tudo bem levantado e coberto de roupagens de dispendiosos tecidos e confeção exclusiva, por doméstica costureira ou, não raro, de afamada modista local ou do Porto.
O povo adorava encostar-se às grades, pelo lado de fora, a gozar o espetáculo, gozo e espetáculo de que não tinha bem a noção serem-no. Mas os atores, esses, sim, tinham bem a consciência da peça que representavam.

No lado de cima da alameda, a afamadíssima e há muito desaparecida Casa dos Linhos oferecia aos cavalheiros que acompanhavam as clientes, talvez porque elas só escolhiam e eram eles quem pagava, um enxota-moscas ou um mata-moscas; que nessa época ainda as havia, aos enxames, nas ruas e nas casas, algumas das quais incomodavam verdadeiramente, espetando o ferrão nas alvas pernas de quem, cansado do vaivém, se sentava nos bancos do jardim.
O enxota-moscas era uma estreita vareta cilíndrica de madeira, tendo numa das extremidades uma farta cabeleira de tiras de papel colorido, agitando-se a cabeleira para afastar o inseto.

O mata-moscas era uma idêntica vareta, mas de extremidade provida de uma espátula em borracha (o plástico viria mais tarde) com uns furos estética e judiciosamente abertos, por forma a que o ar não impedisse a eficácia do manejo do instrumento; pousada a mosca, a sua vítima rápida e surpreendentemente tentava atingi-la com a espátula, assim lhe causando instantâneo e indolor passamento.
Havia quem se organizasse taticamente; um cavalheiro enxotava a mosca acoplada ao seu tornozelo, ou à perna da esposa (tinha que ser esposa), manejando o enxota para o lado do casal vizinho, aterrando a voadora nele ou nela; então o cavalheiro, já prevenido, de mata-moscas semi erguido e pronto a ser usado, desfechava na fera volante a agressão fatal, que nem sempre era isenta de consequências, delas sobressaindo a de hemorrágico esborrachamento, fonte de tremidos e agudos, mas algo contidos, guinchinhos de horror, quando o facto ocorria na roupa ou anatomia da senhora.

Das moscas teria eu muito a dizer, pois a minha infância e meninice foram domesticamente sobrevoadas por enxames de moscas, ao tempo praticamente tidas como animais domésticos, dada a familiaridade e interação entre elas e os humanos. Como eu gostava de as contemplar, voando placidamente e, de repente, uma delas fazia uma aceleração como que ultrassónica, em curva imprevisível, para dar uma cabeçada numa das suas primas, ou irmãs, ou simples companheira de enxame; então, durante algum tempo, a moscaria desatava às corridas e curvas e cabeçadas, até que, saciadas ou esgotadas, retornavam ao sereno e aparentemente caótico voo.

Quando, ao fim do dia, os da casa recolhíamos ao leito, dizia-se que a sala ficava … às moscas.

Guimarães, 17 de janeiro de 2023
António Mota-Prego
(Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.)


terça, 17 janeiro 2023 22:22 em Opinião

Imprimir