A mentira sem vergonha



Diz-se que a mentira é a afirmação contrária à verdade com a intenção de enganar. De entre diferentes tipos de mentiras conhecem-se a mentira inocente ou mentira piedosa,

que é aquela que é dita sem a intenção de causar dano; a mentira acusatória, que é proferida com o intuito de desviar a imputação das próprias faltas; a mentira jocosa como a que é dita para recreio, gracejo ou diversão; a mentira perniciosa como aquela que é dita com o intuito de causar prejuízo alheio. Para os moralistas a mentira é a palavra proferida com a intenção de exprimir uma falsidade.

Quando a mentira é reprimida ou repreendida, manifesta, habitualmente, sinais de vergonha e arrependimento, sendo a vergonha o pejo da acção feita contra o decoro ou contra a decência.

No quotidiano das nossas vidas contactamos, infelizmente com demasiada frequência, com a mentira. Sendo um mal profundamente gravoso, pior se torna quando as pessoas parecem ter já perdido a vergonha de mentir. Mentiroso não é quem quer, é pessoa de boa memória, que faltando à verdade, não esquece a narrativa com que sustenta a falsidade.

Seja na vida social, na vida política ou na vida dos negócios, parece, cada vez mais, as pessoas virem a perder, progressivamente, a vergonha de mentir. Caminhamos, a passos largos, para o ponto zero da credibilidade e da confiança, parâmetros fundamentais na construção de uma família, de uma empresa, de uma comunidade, de um estado e de um mundo melhor.

Focando-me na área política, que é aquela que atinge, de forma vertical, uma grande fatia da população, e dispensando-me descer às mentiradas que vão ocorrendo, aqui ou ali, no domínio da política local, recordo, as que pretenderam justificar a reversão de algumas das medidas adoptadas pelo governo de Passos Coelho, como a das 35 horas da função pública, que nos era vendida como não tendo implicações orçamentais, como se fossemos todos tolos e acreditássemos que havendo um corte de 12,5 % no tempo de trabalho, os serviços poderiam manter a mesma qualidade de atendimento sem admissão de novos trabalhadores ou do aumento das horas extraordinárias. Como a opção foi pelos cofres do estado, a dita qualidade do serviço público foi descendo, progressivamente ao estado que se vê: filas intermináveis às portas das repartições, fecho de serviços de urgência hospitalares, sobretudo obstectrícia, falta de médicos de família, dezenas de milhar de alunos sem professores, etc.

Ou as proferidas a propósito da reversão da privatização da TAP, que diziam pretender salvaguardar o interesse público, tomando a sua gestão e impedindo os privados, detentores do conhecimento e do know-how do sector da aviação que lhe deram uma dimensão e qualidade que não tinha, fossem corridos para agora, depois de lá terem enterrado mais de quatro mil milhões de euros, chegarem à conclusão de que afinal a solução era mesmo a sua reprivatização.

Ou os truques utilizados para enganar os parceiros da geringonça, fazendo orçamentos expansionistas com elevadas dotações para investimentos que depois eram congelados pelas cativações impostas pelos ministros das finanças, conduzindo o investimento público para a desgraça que conhecemos.

Ou encapotando o congelamento das carreiras e aumentos da função pública, marcando assim o passo para o sector privado.

E agora, a habilidosa proposta para enganar senhorios impondo limite de 2% aos aumentos das rendas de casa prometendo compensá-los a nível fiscal, ameaçando assim o já débil mercado de arrendamento, indispensável para a concretização do direito à habitação.

Ou então o descaramento para anunciar, em meados de Junho, que fruto da inflacção a rondar os 8% e da aplicação da fórmula de actualização das reformas, os pensionistas iriam ter um aumento histórico e, algumas semanas depois, sem vergonha, vir anunciar que afinal os aumentos de 2023 iriam ser apenas de metade do previsto pela fórmula, sendo os restantes 50% antecipados para o próximo mês de Outubro numa prestação única, isto é, preparar-se para as revisões das reformas a partir de Janeiro de 2024 incidirem sobre uma base mais baixa retirando aos pensionistas cerca de mil milhões de euros todos os anos.

Como a opinião pública facilmente logo detectou o logro em que iriam cair os pensionistas - confesso que logo que ouvi de sua boca a proposta, não tive dúvidas sobre o impacto que iria ter nas receitas cá de casa – houve que invocar um estudo de peritos dos serviços que antecipavam, para meados da década de 2030, o fim da sustentabilidade da Segurança Social.

Mais uma vez, o truque não passou, já que tal estudo, avaliando a evolução da despesa “esqueceu-se” de avaliar também a evolução da respectiva receita.

Para se fazer uma melhor ideia dos números, só o aumento da receita fiscal deste ano face ao orçamentado, deverá ser da ordem dos 7.000 milhões de euros estando apenas previsto 1.400 milhões para o programa de apoio às famílias e 1.000 milhões para a antecipação aos reformados, acrescidos agora de mais 1.400 milhões para as empresas e IPSS mas dos quais, 720 milhões são empréstimos.

Sendo certo que o país se encontra numa situação de debilidade económica e financeira já que tem uma elevada dívida, que pode significar qualquer coisa como dez mil milhões de juros por ano caso não haja intervenção do Banco Central Europeu recomprando a dívida vincenda, não se pode continuar a minar a confiança dos cidadãos abrindo caminho aos populistas. Se é preciso algum nível de austeridade que se explique e não se minta.

Guimarães, 20 de Setembro de 2022

António Monteiro de Castro

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