"Portugal feio"



(Pedro Portugal, Público, 01.07.2022)
É mesmo! E sem já se poder ironizar, como Pessoa o fez, de que “Há apenas duas coisas interessantes em Portugal, a paisagem e o Orfeu”.


É! ... ambos se foram.
Ou ainda haverá quem se lembre de a panorâmica que, logo um pouco acima da Igreja de S. Martinho de Sande, sobremaneira depois do edifício da Liga dos Combatentes da Grande Guerra e para quem ia para Braga, se divisava, à direita, sobre aquela plaina de Longos e Balazar? Ao jeito do mais cantado, e afamado, bucolismo minhoto; das românticas descrições de Júlio Dinis. E ali estavam os campos ladeados por uveiras de enforcado, uma que outra construção, poucas, de casal ou quinta e, sobretudo, uma paleta esfusiante de cores, de vida activa, cíclica e tranquila.

 

Hoje ... bem, isso é só para recordar.

No entanto essa paisagem era um legado patrimonial (e também cultural) provindo da era pré-industrial. E neste presente em que tanto se enche a boca com a necessidade da preservação do ambiente, dos ecossistemas e da biodiversidade, continua a imperar a sistemática destruição dessa herança ocupacional de um passado milenar que, no entanto, urgiria preservar e valorar (artigo 66.º 2, alínea b), da Constituição). Não só nesse aspecto paisagístico, mas e sobremaneira, no com ele interligado e ainda mais carecido: o ecológico. Que a crosta continental é a que é, não cresce, ou só se altera segundo determinantes geomorfológicas, por o que as permanentes, e sucessivas, devastações do seu solo vegetal, promovidas com o único fito dum imediato interesse privado, egoístico e, ou, para lucro fácil, são um atentado ao futuro da biosfera. E não se argumente com a pontualidade dessas acções, ou a sua reduzida dimensão, pois, como a experiência nos mostra e a sabedoria popular sentencia: grão a grão enche a galinha o papo. Assim, do pouco se vai fazendo muito e o mal começa a ser notado, a ser perceptível. Lesões constantes essas que, no entanto, tem os seus responsáveis.
Quem são eles?

Curiosamente o Portugal feio ousa indiciá-los. Numa imputação assaz generalizada e susceptível, crê-se, de imensas excepções. Tanto mais que a nele mencionada “ignorância política e a corrupção”, a “literacia visual primária, ou negativa”, não podem ser abstractamente universalizadas. Embora e por outro lado, como sói dizer-se, de boas intenções esteja o inferno cheio; ou e de modo mais crédulo, intuir-se: que las hay, las hay. Só que o resultado objectivo está aí à nossa frente e só mesmo um iliterado, ou anémico mental, não consegue discernir a amplitude da calamidade que pende sobre as nossas cabeças.
Desgraça que não resulta da estrutura da organização política existente, como no artigo se defende, mas tão só dos vícios que nele são denunciados e das condutas determináveis de quem os aproveita ou possibilita.

Depois ... depois é por demais sabido que neste jardim à beira mar plantado e de brandos costumes, a culpa morre sempre solteira. E assim a impunidade continua a campear por este País feio. Isto não obstante o que se tem passado no que vai de ano, sem chuvas e muito calor, a demostrar que as alterações climáticas indesejadas são já uma realidade palpável; sejam elas intrínsecas ao processo planetário, ou estejam a ser estas, como maioritariamente se vai pensando, agravadas pela acção do homem, numa progressão (aritmética, ou geométrica, de constante indeterminada) iniciada com a industrialização. Crê-se, portanto, que estas são já um facto indesmentível. E de uma gravidades extrema para o nosso, da espécie, futuro a curtíssimo prazo (na comparação com as centenas de milénios em que o Homo sapiens já habita a Terra).

No entanto e ao que se constata, seja pelo princípio da inércia, seja por inconsequência política, tudo continua na mesma; na mão dos mesmos. E a profanação dos solos permanece em bom ritmo. Assim, destrói-se paisagem, destrói-se biodiversidade e ecossistemas e, ainda, através disso, também se contribui para a adulteração do ambiente. Tudo por a peregrina ideia de que o progresso está na obra, no mais fazer a qualquer custo e não na implementação de um planeamento correctamente pensado, definidor de objectivos colectivos prioritários e devidamente hierarquizados na sua execução. E porque estamos em democracia, ou pelo menos assim se o faz crer, o que vamos tendo é que esse obrar não corresponde senão ao que uns iluminados se acham com direito a impor, ou consentir, à grei. Com a agravante de que as mais da vezes ainda querem abarcar o céu com as pernas, desdobrando-se em fazedorias de duvidoso interesse comum e qualidade.

Mas, retornemos à paisagem. E ao actualmente tão badalado problema das alterações climáticas na perspectiva que vem sendo abordada, a da utilização dos solos. Nesse aspecto e por essa Europa fora, ela depende dos vários níveis de governança (por cá, o central, o regional e o local). Níveis hierarquizados para coordenação compatibilizadora das atribuições e competências próprias a cada um deles, ou entre os vários do mesmo nível. Coordenação que, mais do que de imposição e tutela autoritária, devia ser de concertação; em que as legítimas vontades dos inferiores tivessem cabimento nas orientações dos superiores, embora e sempre, na subordinação às grandes opções e planos nacionais. Mas tal prática entre nós é mera utopia. Acrescida da miragem da estatuída participação directa (artigo 109.º da Constituição). Esta última ocorre, sim, por imposição legal (mas já numa fase conclusiva, que não e como o bom senso democrático aconselharia, a começar previamente pela auscultação e, posteriormente, a prosseguir no acompanhamento e a finalizar com a confirmação) e numa quase que envergonhada publicitação do ocorrer da consulta pública. E mais, parece depreender-se, pela forma da implementação dessa audição, que o que se quer é que não se façam ondas, porque tudo está mais que perfeito e o resto são impertinências descabidas, já que o que interessa são os prazos e que os projectos praticamente concluídos não sofram entraves significativos.

Nisto temos estado e o efeito é o que se vê.
Mas terá mesmo de ser assim? Dúvida democrática que deveria merecer uma profunda reflexão. E nas férias há tempo para isso.

Fundevila, 27 de Junho de 2022


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