A Reconstrução

A Colecção de Fotografia da Muralha (CFM) tem uma história que se confunde com a fundação da Muralha, associação de Guimarães

para a defesa do património, em 1981. Na altura, perante a possibilidade do desaparecimento do importante espólio fotográfico de Domingos Alves Machado, a Muralha adquire esses importantes registos de imagem, completados ao longo dos anos.

A CFM foi digitalizada apenas 3 décadas depois, em 2011, no âmbito da capital Europeia da Cultura, e tem servido, até hoje, para preservar a memória das pessoas e dos espaços que Guimarães comportou, através de exposições, de partilhas e de estudos que sobre ela se fazem de forma sistemática. No entanto, a CFM foi incorporando novas imagens contemporâneas resultantes das suas exposições, mas estando, igualmente, atenta a outros espólios que, entretanto, se poderiam perder.
Um desses importantes espólios pertence à família de João Gualdino Pereira (1923-1991), um jovem que com 23 anos sentiu um forte apelo para documentar fotograficamente o extraordinário feito da comunidade vimaranense que, entre os dias 29 de julho e 2 de agosto de 1947, reconstruiu de forma absolutamente extraordinária a Praça de Toiros ardida e que albergaria um dos números das Festas Gualterianas desse ano. Através da generosidade e interesse da família do fotógrafo amador, e em particular da D. Maria Madalena Pereira, foi possível, através de um protocolo, digitalizar, estudar e tratar essas magníficas imagens que, doravante, integrarão a CFM.
Assim, será possível fazer-se este ano de 2022 uma exposição pública integrada nas Festas Gualterianas, no Largo de S. Francisco, que, esperamos, constitua um importante contributo histórico para as Festas. Inaugurar-se-á na noite de 28 de julho e ficará até 24 de agosto naquele esplêndido espaço aberto.

Ao estudar este magnífico empreendimento comunitário tive, confesso, algum receio pelo atavismo inerente à tarefa de trazer ao conhecimento de todos, 75 anos depois, tão heroica realização. O facto é tão extraordinário, tão inacreditável, que temos sempre o medo de perpetuar alguma autocontemplação comunitária que nos impeça de estar mais atentos e críticos em relação ao presente. Mas a história é tão boa...

Na madrugada do dia 28 de julho de 1947 um incêndio destruiu a Praça de Toiros que então existia, em madeira, no Campo da Perdiz, em local muito próximo ao Cemitério da Atouguia, tendo ficado apenas aquilo que não era combustível: a terra e as pedras que delimitavam o círculo da arena.
A desolação que então se sentiu em Guimarães foi tremenda. A festa brava aprazada para os dias 3 e 4 de agosto, já com tudo contratado, não se realizaria, pois era impossível arranjar alternativa.
Nos jornais da época há relatos dessa desolação e da loucura de alguns, logo naquela infausta manhã, em sonharem reconstruir a Praça de Toiros. Os relatos das conversas dessa manhã são esclarecedores: era impossível reconstruir, não existiam nem meios, nem gente, nem tecnologia que ajudasse à tarefa.
No entanto, às primeiras horas da tarde, começa a consubstanciar-se a hipótese de fintar o impossível. Neste jornal, a 1 de agosto de 1947, escreve-se o seguinte sobre esse dia zero:

(...) Entretanto, passava o tempo, e nem ao menos se sabia qual a solução a tomar.
Alguém, com as lágrimas nos olhos e a fé no coração, balbuciou: E se tentássemos o milagre de reconstruirmos a Praça em cinco dias? Quando os Vimaranenses querem, não há barreiras que não transponham!
Surgiu a esperança, e às 3 horas da tarde repicam os sinos, e os nossos motoristas, a briosa classe dos trabalhadores do volante, fazem silvar as sirenes dos seus carros e atravessam em fila algumas ruas da Cidade, anunciando a boa nova:
VAI RECONSTRUIR-SE A PRAÇA DE TOIROS DE GUIMARÃES!
Far-se-á o milagre!
E o povo acorre ao local do sinistro.
Centenas de mulheres, homens e creanças, removem os destroços, e num momento, o local ficou limpo, pronto a trabalhar-se. (...)

Os relatos dos jornais locais e nacionais da época impressionam. E quem escreve já não o faz de uma forma contida, própria à seriedade de que o jornalismo se investe, mas carrega os textos de adjetivos e de pasmo.
Os serrinhas vão para Aldão cortar árvores que servirão de suporte à estrutura da Praça e entram na cidade, precedidos pela Banda das Oficinas de S.José, como heróis, aplaudidos pela multidão que, também ela se afadiga. Novos e velhos, ricos e pobres, doutores e analfabetos, empreiteiros desavindos que entram no local da reconstrução abraçados, crianças que levam pequenos mealheiros para fazerem peditórios, cantinas improvisadas aonde aparece vinho e alimentos para saciar os trabalhadores, mulheres simples e da alta sociedade vimaranense que se afadigam a cozinhar e a servir quem trabalha, a cabine de som, no Toural, na voz de Abílio Gouveia, faz os pedidos necessários - gasolina, alimentos, boleias aos jornalistas de fora-, prontamente satisfeitos e se anuncia de forma eufórica de que foram cumpridas tais solicitações, para gáudio de uma população inebriada com a sua própria força e determinação, são a imagem desses cinco dias absolutamente inacreditáveis.

No dia 2 de agosto de 1947, a um dia da primeira corrida, a Praça de Toiros está de pé e tem pormenores de graça que os operários não descuraram, apesar da urgência. No Jornal de Notícias escreve-se que, inclusivamente, 40 trolhas foram dispensados, tal era a generosidade que atravessou a comunidade: não havia que dar-lhes a fazer, relata o diário. No exterior da Praça aparece uma frase simples, mas significativa: OBRIGADO OPERÁRIOS.
Quando a Praça ficou pronta para receber a população festiva, não foi propriamente a festa brava o motivo de regozijo, mas, seguramente, a capacidade de uma comunidade ter fintado o impossível.
A nossa comunidade.


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