A jaula dos leões

Penso que a maior parte das pessoas, mais ou menos atentas à realidade, e aos sinais que ela deixa antever, entraram em 2024, com o mesmo terror com que se entra,

sozinho e desarmado, numa jaula de leões. Entra-se e espera-se apenas que os bichos não deem por nós, não queiram fazer do nosso corpo uma refeição extra.
Daniel, numa das fantásticas – mas sempre violentas - histórias do Antigo Testamento, é condenado pelo Rei Dário da Aqueménida (que corresponderá ao atual espaço geográfico ocupado pelo Irão, Iraque, Síria, Turquia e mesmo parte do Egipto) para ser enviado para a jaula dos leões, pelo facto de, ao contrário daquilo que a lei então ditava, adorar um Deus em vez do próprio Rei. Daniel safou-se, ao contrário do que para nós é expectável. No entretanto, em 1981, a banda britânica The Sound, edita o álbum From the Lions Mouth, um dos mais interessantes discos da minha adolescência, cuja capa reproduz essa cena bíblica.

Estamos, previsivelmente, como se costuma dizer, entregues à bicharada.
Mesmo a Europa que conseguiu passar, com base nas suas instituições e nos seus governos, como nunca até aqui se tinha conseguido, de forma solidária e eficaz uma pandemia que nos atirou para uma realidade perigosa e desconhecida, não consegue fazer ressaltar as suas forças e perde-se pelas suas fraquezas. O que nos une, os valores da democracia e de uma cultura cristã, começam a ser obliterados por aquilo que nos divide e que, penso, não têm a dignidade e a possibilidade de progresso que aquilo que nos une poderia ter. As eleições americanas de 5 de novembro, e a forte possibilidade de Trump voltar para nos ensombrar é tão forte e exequível que parece que já estamos dentro da jaula, mesmo antes de lá entrarmos.
Por cá tudo é também um pouco trágico-cómico. Perceber a possibilidade de ter Pedro Nuno Santos como primeiro-ministro, depois de tudo que aconteceu, depois de todas as particulares, claras e repetidas excitações da personagem, tem a mesma razoabilidade que emprestar o carro do pai ao adolescente, para ele, mesmo sem carta, dar umas voltas no bólide pela cidade ... e esperar que, condutor e carro, cheguem intactos depois da temerária permissão. Se se atropelarem uns peões pelo caminho, paciência, o que interessa é que o carro, amolgado ou não, continue na família.

Não consigo perceber quando é que a natural rotação da terra e das democracias se inverteu. Quando os extremismos obliteraram definitivamente as pontes e diálogos que caracterizaram as democracias e o ocidente depois da II Guerra. Assiste-se, progressivamente, a um niilismo militante, em que a ausência dos valores tradicionais se perde sem que nada os substitua. Nietzsche profetizou esse período caótico, a morte de Deus, o acontecimento que possibilitaria o aparecimento de um homem novo, com alguns super-homens que dominariam o conhecimento. Provavelmente o filósofo alemão pensaria no conhecimento científico; mas na verdade esses super-homens já existem, não por aquilo que conhecem de si, mas por aquilo que conhecem dos outros, pelas permissões que damos continuamente na internet para eles nos rastrearem as preferências e, com esse conhecimento, possam condicionar o que pensamos.
Não diabolizo a internet, pelo contrário. Do meu sofá atinjo, com critério, julgo, aquilo que me demoraria dias, semanas ou até meses a alcançar, mas essa é uma jaula em que é preciso, continuamente, saber entrar, mas, igualmente, saber sair, quando o leão se aquieta.

Custará a muitos de nós compreender a vitória progressiva da intolerância. Não sei quando a coisa mudou, e porque mudou. Tenho uma teoria patética de que a espécie humana não aguenta brutais mudanças de velocidade, se enjoa e fica confusa e violenta com elas.
A ditadura do politicamente correto, amplamente difundida pela comunicação social e pela cultura vigente, não procurou ensinar e corrigir comportamentos, mas, pelo contrário, censurar e ostracizar quem pensava de forma diferente. De repente, como numa aceleração de um foguetão espacial, a cabeça ficou tonta e extremam-se pensamentos recalcados. Quando esse recalcamento é pessoal e voluntário, tudo tende a evoluir, quando o recalcamento é imposto de fora, tudo se extrema.

Na passagem bíblica de Daniel com os leões, o condenado conseguiu que os leões não lhe fizessem mal. Pelo contrário, fez com eles uma amizade como aquela que se tem com os bichos domésticos. Perante a inusitada situação, a estranha amizade de Daniel com os leões, o Rei Dário tomou então a resolução de libertar Daniel e atirar para os leões os legisladores que o quiseram, para seu primeiro agrado, glorificar.
Precisamos de um Rei Dário que, mesmo com a hipocrisia do arrependimento, inverta drasticamente o plano inclinado em que nos encontramos. Ou, melhor, que cada um seja capaz de ver no cinzento, no ocre, no verde-azulado, as tonalidades que o preto ou o branco absoluto nos escondem.

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